Bancas de jornal, mercadinhos e o mundo maravilhoso da nostalgia




Com um singelo ruído de um sino, nossa entrada é anunciada no Cantinho da Torta assim que passamos pela porta. O cheiro de tortas assando e café preenche todo o ambiente, e já nos deixa com água na boca. Procuramos uma das mesas ao lado da janela, com vista para a rua, e nos sentamos.

A garçonete nos recebe com um sorriso e pergunta o que vamos comer.

- A torta do dia, por favor! E um café puro.

A satisfação de não precisar especificar que o café é sem açúcar - a única forma correta de se tomar café - é sublime. O outro pedido é feito:

- Hoje eu quero uma torta de maça e um café puro!

Já devidamente acomodados no assento acolchoado, começo a divagar.

- Não sei se é a loucura dos últimos dias - ou meses, na verdade - mas tenho buscado fazer coisas que me tragam um conforto, aquela satisfação que você sente no íntimo, quase como se fosse abraçado. Depois de um ano de intensa polarização política, gente maluca destacando defeitos que não enxergava antes mas que enxerga agora porque é a outra ideologia que está fazendo... problemas pessoais, muito trabalho e cansaço mental, decidi tirar um tempo para descansar física e mentalmente fazendo coisas que não fazia a muito tempo. Uma dessas coisas é voltar a ler quadrinhos e visitar bancas de jornal.

O café chega. A torta está saindo do forno, virá em breve. Tomo um gole da bebida quente e amarga, e imediatamente sou tomado pela sensação de conforto que só uma xícara de café quente pode proporcionar. Continuo o assunto.

- Semana passada eu descobri uma nova banca de jornal. Veja bem, bancas de jornal são locais sagrados em extinção. Desde que me entendo por gente eu frequento estes pequenos antros que oferecem um mundo inteiro de jóias de conhecimento e cultura pop por alguns trocados. A cada dia que passa temos cada vez menos bancas de jornal em funcionamento - e isso quando elas não nos enganam: você olha de longe, vê que é uma banca, se anima, entra e se depara com uma lojinha de produtos de qualidade duvidosa e nenhuma revista.

As tortas chegam. Entre uma garfada e um gole de café, a conversa continua a fluir.

- A tempos eu não descobria uma banca com bom conteúdo, e dessa vez eu tinha tempo para parar e olhar tudo com calma. Me senti como um adolescente de novo - só que desta vez eu tinha dinheiro. Não tinha tanto material quanto em outras bancas que eu já vi, mas achei umas coisas interessantes lá, como um especial do Hulk, uma edição especial do Tex e uma revista com - pasme - 800 páginas por um preço módico. Fiz a feira, voltei pra casa e fui folhear as novidades. A sensação é difícil de definir em palavras, é algo... que traz paz, simplesmente. Remete a coisas boas da infância/adolescência, e por um momento te faz sair desse mundo complicado e agressivo, e te transporta pra uma época mais simples, um mundo que - claro - só existe na nossa memória seletiva, mas que parece ressurgir novamente através de um portal de memorabília e te deixa respirar em paz por alguns momentos...

Eu sou interrompido com uma gargalhada inevitável:

- Desculpe, de verdade! Eu concordo com tudo que você disse, mas é impossível pra mim não associar banca de jornal ao lugar onde eu ia folhear revistas de mulher pelada escondido ou, em raríssimas ocasiões, comprá-las, pelo dobro do preço (a "taxa de discrição" do Seo Manuel era alta!). Mas retomando o fio, você tem razão. A banca é um lugar que infelizmente está morrendo. Tanto pro bom quanto pro ruim. Ninguém mais compra gibis, revistas "físicas" ou mesmo aqueles livrinhos com cifras pra violão e teclado dos grandes hits do momento.

Como se lesse a minha mente, o sistema de som do Cantinho começa a tocar Villa Lobos. Como não amar esse lugar..

- Há duas maneiras de enxergarmos isso. A inevitável mudança ou  morte de um serviço pela evolução. Ou realmente o abandono. Eu, mesmo sendo pessimista, prefiro enxergar como sinal dos tempos. Afinal, até a playboy deixou de existir...

- Quanto à simplicidade que você mencionou... O meu gatilho são os mercadinhos. Aquelas "vendinhas" de produtos a granel, com uma caderneta com o nome dos clientes fiéis que quitam as contas no dia do pagamento. Os cheiros desse lugar... Café, temperos, até mesmo a fumaça do cigarro quando se podia fumar a céu aberto. Essas coisas me lembram o conforto de um tempo onde a única preocupação era com as notas e o que fazer quando a escola (finalmente?) acabasse.

- É meu amigo. A verdadde é uma só. Estamos velhos. Estamos caminhando rumo àquela ranhetice que reclamávamos nos nossos pais e avós. Iremos dizer aos nossos filhos, aquilo que jurávamos jamais repetir ao ouvir de nossos pais. Soltaremos o inevitável "no meu tempo"...

- Eu, hoje, levo isto comigo de forma mais serena do que achei que levaria. E me esforço para evitar erros mais graves. Mas também, sempre que posso, dou a "carteirada" da idade para vencer uma discussão e não deixo de citar como as coisas "no meu tempo" eram melhores.

E deixa eu morder a minha torta antes que ela esfrie mais do que o meu café!



Os dois amigos terminam sua refeição e seu bom papo, saindo em seguida para continuar com seus afazeres da vida adulta.

(Texto escrito a 4 mãos)

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